Quando o fogo revela a falta de moradia digna: 12 anos do incêndio na Ilha, em Heliópolis
- Escrito por Isabela do Carmo | Editor Douglas Cavalcante
- há 14 minutos
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Tragédia expôs a precariedade habitacional na maior favela de São Paulo. Moradora que sobreviveu relembra a noite do incêndio e os obstáculos para reconstruir a vida
A favela de Heliópolis, hoje reconhecida como a maior de São Paulo, tem em sua trajetória a luta constante por moradia digna — um direito que, infelizmente, ainda parece distante para muitos de seus moradores. Entre mobilizações populares pela construção de habitações coletivas e a chegada lenta das moradias sociais, a comunidade enfrentou dois grandes incêndios que marcaram sua história recente.
O primeiro ocorreu em 1996, no esqueleto de um prédio abandonado na Rua Coronel Silva Castro. O segundo, há 12 anos, atingiu a região conhecida como A Ilha, na esquina entre a Rua Cônego Xavier e a Avenida Almirante Delamare. Em ambos os casos, as causas oficiais nunca foram reveladas. Persistiu, no entanto, o estereótipo comum: teria começado com o fogo de uma vela que se alastrou.
Na Ilha, o incêndio destruiu 50 casas, deixou três mortos, 22 feridos e cerca de 860 pessoas desabrigadas. A área atingida, de aproximadamente 3 mil metros quadrados, hoje abriga parte do estacionamento do Hospital Heliópolis.

À época, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal da Habitação, cadastrou os desabrigados em programas sociais de moradia e concedeu auxílio-aluguel no valor de R$ 400 mensais, por até seis meses. Durante esse período, as famílias também foram acolhidas provisoriamente em espaços como a quadra da Escola de Samba Imperador do Ipiranga e a Escola Municipal Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior (Gonzaguinha) - até encontrarem um novo lar.
Reginaldo Gonçalves, 50 anos, diretor da UNAS, relembra que, na época do incêndio, a instituição - junto com músicos locais - organizou um show beneficente na quadra da escola de samba, com entrada solidária: alimentos, roupas e agasalhos que seriam doados às famílias afetadas.
“Foi uma forma de mostrar o comprometimento da comunidade. Houve uma mobilização enorme da população para fazer a triagem dos materiais e destiná-los às famílias. Foi um momento trágico, mas também revelou a união e a solidariedade da favela”, destaca.
Testemunha do incêndio na Ilha
Tatiane Silva, de 32 anos, é empreendedora e moradora de Heliópolis. Antes de conquistar sua casa própria, viveu durante três anos na Ilha. Ela foi uma das testemunhas da tragédia que destruiu cerca de 50 casas e deixou centenas de desabrigados.
"Morei na Ilha por três anos. Era muito difícil. Toda chuva forte ou ventania causava medo", lembra. "Não me sentia segura. Tinha muita fiação exposta, barracos de madeira... Qualquer coisa podia causar um incêndio."
Imagens da Ilha antes do incêndio | Anos 2010 e 2011 - Reprodução Google
Na noite do fogo, Tatiane estava em casa com a filha pequena. O relógio marcava por volta das 21h quando ouviu gritos na rua. “Só ouvi o pessoal correndo e gritando ‘tá pegando fogo’. Fiquei tão nervosa que só consegui pegar minha filha e sair correndo. Morava bem em frente, mas, por sorte, o fogo não chegou na minha casa.” Nem todos tiveram a mesma sorte. “Colegas meus só saíram com a roupa do corpo. Perderam tudo”, conta.
Tatiane reconhece que houve apoio do poder público, mas destaca que ele demorou a chegar. “Eles acolheram quem não tinha para onde ir, distribuíram cestas básicas, produtos de higiene, colchões. Mas isso só aconteceu semanas depois.”
Sem casa, ela foi acolhida temporariamente pela cunhada. Um mês após o incêndio, conseguiu alugar um cômodo com cozinha. “O maior obstáculo foi conseguir o auxílio-aluguel. Meu marido teve que ficar dois dias numa fila.”

Hoje, mais de uma década depois, a vida tomou um novo rumo. Tatiane é dona do próprio negócio e conquistou sua moradia. “Vivo bem melhor. Nunca desisti. Sempre corri atrás do melhor.” Apesar das conquistas pessoais, ela ressalta a importância de ações estruturais para que tragédias como a que viveu não se repitam: “É lamentável. Para evitar novas tragédias, é fundamental que existam políticas públicas que garantam moradia digna, programas habitacionais, auxílio para quem precisa e ações que melhorem de verdade a vida das famílias das periferias.”
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