Lara Manoella: existir, resistir e transformar. A luta de uma mulher trans pela justiça social
- Escrito por Isabela do Carmo | Editor Douglas Cavalcante
- 28 de jun.
- 5 min de leitura
Lara Manoella, mulher trans, periférica e assistente social reconhece o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+ como uma data de resistência
Lara Manoella. Foi esse o nome que ecoou em sua mente enquanto permanecia diante do espelho - não apenas frente ao reflexo, mas frente a si mesma. A jovem assistente social, hoje com 28 anos, iniciou sua transição de gênero aos 18. Ainda na juventude, travava uma busca incansável por ressignificar-se, desejando um encontro verdadeiro com a própria essência. Mas foi somente na maturidade, com passos mais firmes e olhar mais sereno, que reconheceu-se inteira: Lara Manoella Aguiar das Graças.
Hoje, Lara é coordenadora do Movimento LGBTQIAPN+ de Heliópolis e Região e atua como assistente social na Medida Socioeducativa em Meio Aberto (MSE) do Parque Bristol, iniciativa gerida pela UNAS. Encontrou na educação não apenas um caminho, mas uma ferramenta poderosa de transformação - uma ponte para melhores oportunidades de trabalho, sobretudo enquanto mulher trans, preta e vinda da periferia. Neste Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAPN+ - celebrado neste sábado (28) - ela reflete sobre o verdadeiro significado da data: resistência.

“Não vejo como apenas um dia de orgulho, mas como um dia de resistência. A resistência da pessoa LGBT é vivida a cada instante, em todos os espaços. Somos constantemente atravessados por rejeições, violências, pelo ódio gratuito e pela exclusão. Resistimos ao moralismo, ao machismo, à transfobia e à homofobia. Mas, às vezes, isso cansa... A gente descansa. E, ainda assim, seguimos de pé.”
Para quem vê de fora, pode parecer que Lara nasceu aos 18 anos. Mas ela garante: Lara sempre existiu. “Quando olho para a minha infância e adolescência, reconheço que a Lara sempre esteve ali. Silenciosa, talvez, mas presente. Só que, diante de tanta desigualdade, violência e dos padrões que nos dizem quem podemos ou não ser, a Lara não teve voz por muito tempo. Brinco que ela é tudo aquilo que eu não era antes da transição de gênero. Lara é expansiva, é uma mulher que brilha. Hoje, vivo experiências que só ela poderia me ensinar”, diz.

Lara conta que, ainda na adolescência, já compreendia seu interesse por meninos - mas também por meninas - e passou a se reconhecer como uma pessoa bissexual. Foi nesse período, em meados dos anos 2010, que começou a sentir, com mais força, o peso dos estigmas e estereótipos que a cercavam, especialmente dentro da própria família, onde o processo de aceitação foi longo e desafiador.
“No começo, tive grandes conflitos com a minha mãe. Foi um período muito delicado”, relembra. “Mas agora entendo algo que, naquela época, me escapava: nossas escolhas também impactam quem está ao nosso redor.”
Hoje, Luciana Agda, 51 anos, é uma das maiores companheiras de Lara. Mas no período em que a filha compartilhou pela primeira vez sua decisão de iniciar a transição de gênero, o acolhimento esbarrou no medo do que Lara poderia enfrentar em um mundo ainda tão hostil à diferença.
"Eu sempre acompanhei ela, mas com muito medo. A gente vive em uma sociedade homofóbica e machista, então no começo eu tive muito receio. A Lara sempre desafiou esses estereótipos de pessoas que ‘não deveriam existir’. No início, eu não sabia lidar muito bem com isso”, aponta.
Foi quando começou a frequentar o Movimento de Mulheres que passou a compreender e acolher a Lara da melhor forma. "O movimento foi fundamental para mim, porque me ajudou a entender a questão. E eu sou muito feliz por ser mãe da Lara. Ela mostra a todos que a existência dela vai permanecer.”

Segundo Lara, sua mãe passou a apoiá-la e a compreendê-la aos poucos. "Foi um processo lento, mas que fortaleceu muito a nossa relação. Hoje, posso dizer que somos muito próximas justamente por termos passado por tudo isso juntas. Primeiro, minha família precisou compreender a minha homossexualidade; depois, a transexualidade. Havia muitas questões que precisavam ser conversadas. E, no fim das contas, ninguém nunca ensinou a ela como lidar com tudo isso”, conclui.
Tudo Passa Pela Educação
Antes de iniciar sua transição de gênero, Lara concluiu o ensino médio e começou a trabalhar em uma empresa de design gráfico. Sem grandes pretensões de ingressar no ensino superior, foi levando a vida como podia - até receber um incentivo que mudaria o rumo da sua história: o apoio da mãe, que já trabalhava na UNAS, para que voltasse a estudar.
Foi dentro da organização que encontrou a primeira porta para uma verdadeira transformação. Começou colaborando com a equipe administrativa e, depois, teve a experiência de atuar no Serviço de Assistência Social à Família (SASF). E foi nesse percurso que percebeu: era na luta por justiça social que queria construir sua trajetória. Foi também nesse ambiente da UNAS que se sentiu confiante e confortável para ser quem realmente era.
Em um dia comum, após sair do expediente foi para casa e deu o primeiro passo rumo à sua transição. “Eu estava me sentindo muito segura. Fui para casa, coloquei umas roupas lidas como ‘femininas’ e alonguei o cabelo. Eu gostei daquilo. E foi ali, em 2015, que eu entendi que era aquela pessoa que eu realmente era.”

Foi experimentando cabelos, maquiagens e roupas diversas que entendeu que estava em processo de transição. “A Lara foi surgindo com todos esses cuidados, e o movimento LGBTQIAPN+ também teve um papel fundamental nisso, porque me apoiou e me impulsionou. Foi uma mudança coletiva.”
Ao se reconhecer como uma mulher trans e motivada a seguir pelo caminho da luta pela garantia de direitos, concluiu a graduação em Serviço Social aos 24 anos. Com o diploma em mãos, recebeu a oportunidade de atuar como assistente social na Medida Socioeducativa em Meio Aberto (MSE), no Parque Bristol.
A importância do acesso à educação
Mesmo tendo tido a oportunidade de cursar o ensino superior, Lara reconhece que nem todas as pessoas trans e travestis têm o mesmo acesso. “Eu pude escolher a minha profissão. Fiz a escola certinho, nunca faltava. Mas sei que muitas pessoas LGBTQIAPN+ não têm esse mesmo acesso. Muitas passam pela evasão escolar. Já na infância, na escola, me chamavam de ‘viado’. Então, é muito difícil passar por isso sem ninguém. Eu tive uma mãe que me incentivou a estudar, mas nem todas as pessoas contam com essa rede de apoio.”
É aí que, para ela, entram as políticas públicas de acesso à educação e de permanência nos espaços educacionais para pessoas LGBTQIAPN+. “Muitas pessoas ficam presas aos rótulos que nos são impostos - ainda mais as pessoas trans e travestis. A gente não consegue se enxergar na universidade.”
A Câmara dos Deputados ainda analisa o Projeto de Lei (PL) nº 3109/2023, que visa incluir pessoas trans e travestis nas políticas de ações afirmativas para os cursos de graduação em todas as instituições federais de ensino superior. A proposta, elaborada pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP), estabelece a reserva de, no mínimo, 5% das vagas para essa população.
Nos cursos com menos de 50 vagas no total, deverão ser destinadas, no mínimo, três vagas exclusivas para estudantes trans e travestis. O projeto será analisado em caráter conclusivo pelas comissões de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial; de Educação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. Para se tornar lei, a medida precisa ser aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal.
Além disso, caberá às universidades instituir e coordenar comitês técnicos responsáveis por atender às demandas relacionadas à implementação da medida, em diálogo com organizações e representantes LGBTQIA+ auto-organizados. A proposta também prevê que essas modalidades estejam resguardadas por políticas de permanência estudantil e tenham prioridade no acesso a esse tipo de apoio.
Para Lara, o que falta para a população LGBTQIAPN+ periférica é mais abertura para oportunidades - para que essas pessoas também possam enxergar a educação como uma ferramenta de transformação e garantia de direitos.
“Faltam políticas públicas eficazes. Eu costumo dizer que todas as pessoas estão cercadas por LGBTs: seja uma amiga, uma vizinha, uma colega de trabalho. Mas a falta de políticas nos apaga de espaços que poderiam transformar nossas vidas”, reflete.
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