Da quadra da UNAS ao solo internacional: o caminho de Erick no esporte,
- Escrito por Isabela do Carmo | Editor Douglas Cavalcante
- 30 de mai.
- 7 min de leitura
Atualizado: 9 de jun.
Jovem de Heliópolis é atleta de rugby em cadeira de rodas pelo Comitê Paralímpico Brasileiro
Foi nas ruas da favela de Heliópolis, na zona sul de São Paulo, que o jovem Erick de Jesus Silva, 17 anos, teve seu primeiro contato com o esporte. Antes de calçar as chuteiras ou tocar em uma bola, ele corria livre pelas vielas da comunidade, brincando de esconde-esconde e pega-pega com os amigos. A paixão pelo esporte, no entanto, ganhou força quando Erick se tornou educando no CCA Mina, projeto social da UNAS. Foi lá que ele descobriu e se desenvolveu no futsal, dando os primeiros passos em uma trajetória que ultrapassaria qualquer limite imposto.
Erick nasceu com Charcot-Marie-Tooth (CMT), uma doença neuromuscular de origem genética e hereditária, que compromete os nervos periféricos, afetando principalmente a força e os movimentos dos membros. Conviver com a deficiência nunca foi, para ele, sinônimo de desistência. Pelo contrário, tornou-se combustível para ir além. Se para muitas crianças e jovens o esporte pode ser apenas uma atividade ocasional, para Erick tornou-se uma missão de vida. Determinado, ele superou barreiras físicas e sociais e, hoje, é atleta de alto rendimento.

O jovem faz parte do time de rugby em cadeira de rodas do Comitê Paralímpico Brasileiro e também defende o RONINS Quad Rugby, o primeiro time de rugby em cadeira de rodas da capital paulista. O esporte, que entrou em sua vida como paixão, agora também é palco de superação, resistência e conquistas.
Quando o Esporte se Torna Caminho
Dentre as atividades que participava no Centro para Crianças e Adolescentes - CCA Mina, Erick afirma que as práticas de futsal sempre foram suas favoritas. Foi ali que ele percebeu, pela primeira vez, que o esporte poderia ser muito mais do que diversão - sendo uma alternativa para sua vida profissional.
Além das aulas de futsal realizadas no CCA Mina, ele guarda na memória os momentos das integrações entre os CCAs e dos eventos culturais, como o Festival Helipa Music.
“A UNAS foi como uma segunda casa pra mim. Passei toda a minha infância lá. Minha família inteira já se envolveu em atividades na UNAS. Sempre gostei muito dos CCAs, tenho muitas recordações. Foi lá que fui educado, cresci e aprendi muito. Eu curtia demais as integrações. Rolava até uma rivalidade saudável entre os grupos de futsal e outros esportes.”
Mariana da Silva, 38 anos, tia e ex-educadora de Erick no CCA Mina, lembra da infância do sobrinho. "Ele era uma criança como qualquer outra. Brincava, aprontava, às vezes até se metia em brigas. A deficiência nunca definiu quem ele era. É claro que, como família, tínhamos aquela preocupação inicial sobre como seria a convivência com os outros alunos. Mas sempre estivemos por perto, mostrando pra ele - e pra todos - que ele era capaz."
Ela também recorda com bom humor um hábito comum de Erick na infância. "Às vezes ele queria faltar à aula só pra ficar jogando bola na quadra da UNAS. A gente até brigava com ele, mandava ir pra escola, mas era visível como ele amava aquele espaço. Foi através dessa vivência nos projetos sociais e oficinas da UNAS que ele pôde se desenvolver. Sempre acreditamos no poder transformador da educação."

Desde a infância, o jovem conta que sempre recebeu o apoio da família - especialmente da mãe, tias e avós - para ser livre, brincar e praticar esportes. Esse incentivo, presente desde cedo, foi o combustível que o impulsionou a ter, hoje, a confiança necessária para se tornar um atleta profissional.
“O esporte sempre foi o meu lugar, onde eu me sentia feliz, realizado e parte de algo, mesmo com as minhas dificuldades. Nunca deixei de participar de nada: futebol, vôlei, queimada... eu estava sempre no meio. A minha maior motivação sempre foi a minha família. Eles nunca deixaram de me apoiar, em absolutamente tudo.”
A Chegada ao Centro de Treinamento Paralímpico
Em 2018, Erick passou a frequentar as aulas de vôlei no CEU Heliópolis. Foi lá que, pela primeira vez, ouviu seu professor falar sobre o Centro de Treinamento Paralímpico Brasileiro. Naquele momento, o jovem despertou para uma nova possibilidade: a de também fazer parte do espaço, como aluno de uma das modalidades da Escola Paralímpica de Esportes.
“Quando soube dessa oportunidade, comecei a ligar quase todo dia, querendo saber como poderia entrar”, relembra. O tempo passou e, por alguns anos, o sonho precisou ser adiado, principalmente por conta da pandemia de Covid-19, que interrompeu muitas atividades.
“Mas finalmente, em 2023, o Centro Paralímpico me retornou, falando sobre a Escola Paralímpica e explicando que eu poderia começar. Quando fui lá, me apresentaram todo o Centro de Treinamento e as modalidades disponíveis. Foi quando tudo começou de verdade pra mim”, conta.
Milena Carrari, 25 anos, tia de Erick, conta que recebeu com certa apreensão a notícia de que o sobrinho havia sido convidado para participar da Escola Paralímpica. "Ele sempre teve o sonho de entrar no Centro Paralímpico, mas confesso que, no começo, fiquei com receio. Parecia algo distante da nossa realidade, algo que talvez não fosse acontecer."
Ela explica que o maior medo era ver Erick se frustrar com uma possível negativa. "Ele via aquilo como um projeto de futuro, algo muito importante. Então ficamos naquela dúvida: vai ou não vai? Como lidar com isso? Chegamos a recorrer a informações, pesquisar, tentar entender melhor o que era essa oportunidade. E, aos poucos, fomos dando credibilidade à ideia que ele trouxe pra gente. Acreditamos que essa experiência poderia, sim, ser transformadora para ele."
O Início da Jornada no Rugby
Erick explica que, anualmente, há um rodízio entre os alunos da Escola Paralímpica, para que eles possam experimentar várias modalidades e descobrir quais se adequam melhor a cada um. No primeiro período, em 2023, o jovem escolheu o tênis de mesa. Porém, em 2024, conheceu o rugby - e foi amor à primeira vista.
“Na primeira batida de cadeira, eu já senti que era aquilo que eu queria para a minha vida. Comecei a treinar forte, mas sem grandes pretensões”, lembra.
Mauro Souza, 34 anos, treinador do RONINS Quad Rugby e professor da Escola Paralímpica, conhece Erick desde 2023, quando o jovem ainda frequentava as aulas de tênis de mesa. Na época, Mauro observava atentamente quais alunos tinham potencial para migrar para algum time competitivo - foi aí que convidou Erick para ingressar no rugby.
“O Erick traz uma maturidade impressionante para a idade, e tudo o que ele aprende fora da quadra só potencializa ainda mais seu desempenho dentro dela”, destaca o treinador.
Convocação para a Seleção Brasileira de Rugby em Cadeira de Rodas
Foi em 10 de maio de 2024, quando Erick e suas tias Milena e Mariana, ouviu o tão aguardado anúncio: havia sido convocado para a Seleção Brasileira de Rugby em Cadeira de Rodas. A emoção tomou conta da família naquele momento.
Pouco tempo depois, a alegria se renovou com mais uma grande notícia - Erick também foi chamado para participar do Qufora Egmont Open 2025, representando a Seleção Brasileira de Rugby em Cadeira de Rodas. O torneio amistoso foi realizado em abril deste ano, na cidade de Odder, na Dinamarca - marcou o primeiro compromisso internacional do time brasileiro na temporada de 2025.
“Quando recebi a convocação para ir à Dinamarca, foi uma sensação maravilhosa. Na mesma hora, liguei para a minha família. Eles ficaram um pouco em choque, sem saber se era verdade ou não… mas era real”, diz o atleta.
O torneio aconteceu após duas semanas intensas de treinamentos da Seleção Brasileira, realizados em São Paulo (SP) e Niterói (RJ). Segundo Erick, a competição teve caráter amistoso e foi voltada especialmente ao desenvolvimento de atletas iniciantes, servindo como etapa estratégica na preparação da equipe.
Além do Brasil, participaram as seleções da Alemanha, Suécia e Holanda. O evento representou uma oportunidade de intercâmbio esportivo e serviu como preparação para o principal compromisso da temporada: a Copa América 2025. Ao final do torneio, a Seleção Brasileira conquistou a medalha de bronze, vencendo a Alemanha na disputa pelo terceiro lugar.

“Defender a Seleção, representando o Brasil e a minha quebrada, é indescritível. Cheguei a lugares que nunca imaginei, como a França e a Dinamarca. Estar lá, jogando contra os melhores do mundo, foi surreal. Achei que isso levaria anos pra acontecer. Foi uma experiência de muito aprendizado e, sem dúvida, inesquecível.”
Oportunidades no Esporte Ainda Distantes da Juventude Periférica

Para Milena, é um grande orgulho ver o sobrinho fazendo parte da Seleção Brasileira. No entanto, destaca a importância de ampliar o acesso ao esporte por meio de políticas públicas mais efetivas, que cheguem de fato à juventude periférica.
“Aqui em Heliópolis, o foco ainda está muito concentrado no futebol. Faltam opções, outros esportes que também acolham a molecada da comunidade. As políticas públicas são limitadas, têm duração curta, e nesse tempo não dá para um atleta se desenvolver plenamente. Estamos falando de algo que transforma vidas. Mas dentro da comunidade ainda faltam recursos, espaços adequados, profissionais capacitados e projetos duradouros. Falta investimento - tanto na estrutura quanto nas pessoas.”
Milena também ressalta um ponto essencial para a permanência de jovens atletas em projetos esportivos: o apoio financeiro. “Fala-se muito em rede de apoio, mas, quando surgem novos projetos, quase nunca há uma bolsa, um auxílio. Como esse jovem vai se deslocar, vai competir, se a gente mora em Heliópolis e o torneio é em outra cidade ou estado? Quando o Erick foi para o Centro Paralímpico, por exemplo, tivemos que mobilizar a família toda para que ele conseguisse participar.”
Ela conclui refletindo sobre os desafios enfrentados por muitos jovens como Erick: “A falta de dinheiro e a desigualdade social limitam demais. Às vezes, o jovem até tem talento, mas falta tudo o que vem em volta - estrutura, apoio emocional, alguém que o acompanhe no dia a dia. Se existisse um projeto que realmente incluísse, pensando em todas essas dimensões, o impacto seria imenso. A juventude da periferia tem potencial - só precisa de oportunidade.”
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