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“Minha cor chega antes de eu ter a oportunidade de me apresentar”

  • Escrito por André Silva | Editor Douglas Cavalcante
  • há 2 horas
  • 5 min de leitura

Conheça a trajetória de força, beleza e dor de mulheres negras da periferia


Na maior favela de São Paulo, Heliópolis, a presença da população negra remonta à própria formação do território na década de 1970, quando o terreno foi utilizado pela prefeitura para alocar “provisoriamente” mais de 150 famílias das favelas da Vila Prudente e da Vergueiro, além de outras vindas de diversas regiões do Brasil, sobretudo do Nordeste. Ao longo dos anos de existência — e de sobrevivência — Heliópolis contrapôs a violência do Estado e a marginalização social das favelas, consolidando-se com base na organização popular em busca de melhorias. Sua história expressa uma luta contínua contra o racismo, ecoada por becos e vielas em reivindicações por educação, saúde, moradia, condições de vida e oportunidades mais justas.


Os pretos e os favelados, como eram chamados com preconceito e ignorância por moradores do entorno, resistiram com esperança e resiliência em um país marcado por políticas racistas e eugenistas. A eugenia, entre tantas práticas excludentes, promoveu a ideia de inferioridade das pessoas negras, associando seus traços físicos, origens culturais e históricas a algo indesejado, o que gerou o distanciamento de elementos identitários e a negação de suas próprias características.


Alexia Borges é uma mulher negra e empreendedora que vive e resiste em Heliópolis. Ela levou muito tempo para se reconectar com sua origem, mas, em 2016, iniciou seu processo de transição capilar, deixando para trás os alisamentos químicos e físicos para assumir a textura natural do cabelo crespo — um gesto de resgate e valorização da identidade racial após séculos de imposição de padrões estéticos que associavam beleza e prestígio à brancura.


Alexia Borges, 32 anos é moradora de Heliópolis proprietária da Bombom Chocolatty Eventos e Recreação | Foto: Cindy Tavares
Alexia Borges, 32 anos é moradora de Heliópolis proprietária da Bombom Chocolatty Eventos e Recreação | Foto: Cindy Tavares

“Eu me descobri como pessoa negra, me reconheci e me encontrei”, conta Alexia. “Mesmo dentro de muitas críticas e olhares, eu também tive apoio e admiração das pessoas por estar vivendo e me manter firme… nesse processo eu também construí parte da autoestima que carrego hoje.”


“Eu levei muito tempo pra me reconhecer como uma pessoa negra. Sou de família negra e nordestina, mas eles têm pouquíssima ou quase nenhuma consciência racial, e quando a minha consciência despertou, eu tive uma crise dentro de casa”, explica. O termo eugenia pode ter desaparecido dos discursos oficiais, mas ainda se manifesta em comportamentos cotidianos disfarçados de piadas e comentários “inofensivos”. “Comecei a rebater falas e atitudes que, aos meus olhos, não eram aceitáveis… levou tempo até que, junto comigo, elas [a família] criassem o mínimo possível de consciência. Hoje eu me reconheço como uma mulher negra e forte.”


Isabelly da Silva, 14 anos é moradora de Heliópolis | Foto: Douglas Cavalcante
Isabelly da Silva, 14 anos é moradora de Heliópolis | Foto: Douglas Cavalcante

Isabelly da Silva tem 14 anos e nasceu em Heliópolis, mas passou parte da infância em Petrolina, Pernambuco, ao lado dos pais. Essa vivência entre dois lugares distintos marcou profundamente sua formação e percepção de mundo — embora, para quem carrega a pele negra, pouco mudem as experiências de preconceito. Os olhares desconfiados se repetiam, assim como as atitudes racistas travestidas de piadas e brincadeiras. Ainda jovem, Isabelly compreendeu que o racismo se manifesta de formas sutis, mas profundamente enraizadas no cotidiano.


“Nós somos muito discriminados, a gente tem essa questão de alguns lugares não quererem que a gente esteja, ou, se estivermos, vão tentar sempre nos colocar no lugar de minorias”, relata.


Essas vivências a levaram a refletir sobre o lugar que ocupa e pertence, e a importância de reconhecer-se como uma menina negra em processo de fortalecimento e consciência. A partir dessa percepção, Isabelly buscou, na cultura, na leitura e no diálogo, caminhos para transformar a dor em conhecimento e pertencimento.


Isabelly em participação na programação da Rádio Comunitária Heliópolis
Isabelly em participação na programação da Rádio Comunitária Heliópolis

"Eu tive essa parte de morar com meus pais, eles não falavam muito sobre isso com a gente, às vezes a gente sofria racismo e só ia saber depois”, lembra. “Essa identidade, esse pertencimento, esse conhecimento de entender que, dentro da sociedade e dentro de mim mesma, eu sou uma mulher negra, surgiu na transição da infância para a adolescência.”


A jornada de Alexia e Isabelly reflete muitas outras trajetórias de pessoas negras, especialmente nas periferias. Suas experiências revelam como a resistência coletiva, forjada nas favelas, se entrelaça com a luta individual pela afirmação da identidade negra, expondo as marcas que o racismo e as políticas discriminatórias deixaram no imaginário social brasileiro.


Esses impactos também atravessam a vida de Patty Souza — gestora de projetos, mãe, avó, mulher de axé, porta-estandarte de um grupo de afroxé e coordenadora do Movimento Negro de Heliópolis e Região. “Minha cor chega antes de eu ter a oportunidade de me apresentar”, afirma, revelando como o racismo estrutural se antecipa e define espaços antes mesmo que ela possa ser vista por inteiro.



Patty sentiu uma dor intensa ao perceber que o racismo não se limitava às ruas, às instituições ou aos olhares estranhos — ele também habitava a família de sua filha. O que deveria ser um espaço de afeto e segurança revelou-se como mais um ambiente atravessado por séculos de pensamentos retrógrados, ao ver a filha ser discriminada pela própria avó paterna. “Eu não tinha noção do que fazer e como ajudá-la”, lembra, diante de uma violência escancarada, mas silenciosa.


O encontro de Patty com o Movimento Negro de Heliópolis surgiu como resposta à necessidade de compreender a origem dessa dor e transformá-la em ação. Nas plenárias do movimento, encontrou acolhimento, conhecimento e força. “Ao começar a participar, percebi que muitas coisas que já havia vivido e sentido na pele e na alma eram racismo e discriminação. Me descobri preta por volta dos 42 anos e me identifico como uma mulher preta retinta há cerca de três anos. O processo foi longo, de entendimento e consciência racial.”


Essa caminhada ampliou sua consciência e a aproximou da ancestralidade. “Não me sinto só”, diz. “Estar à frente nesses espaços me transformou de uma pessoa tímida e com medo da vida em alguém que se reconhece em um processo complexo, dinâmico e multifacetado. Tudo isso só é possível porque tenho construído relações importantes para mim.”


Em Heliópolis, o fortalecimento da população negra nasce tanto das resistências individuais quanto da coletividade. A escuta, o apoio mútuo e a partilha transformam vivências pessoais em luta conjunta. Essa construção coletiva fortalece identidades, amplia vozes e cria caminhos para o reconhecimento e a representatividade.


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“Quando atuamos em conjunto, nossas vozes ganham mais alcance, mais força, nossas lutas se fortalecem e nossas experiências individuais se transformam em movimento, nossas experiências quando compartilhadas dão forças aos nossos.” afirma Alexia.  


É dentro dessa luta que se compreende que as pautas que envolvem os povos pretos não podem ser restritas a datas simbólicas, como o 13 de Maio ou o 20 de Novembro. A valorização da história, da cultura e da presença negra deve ser constante, pois a resistência é cotidiana — nas escolas, nas ruas, nas favelas, nos espaços de trabalho e em todos os lugares onde há corpos negros existindo e resistindo.


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“A discriminação e as desigualdades enfrentadas pela população negra, — como o genocídio da juventude negra, a disparidade salarial, a falta de acesso a espaços de poder, a violência policial e a invisibilidade em diversas áreas — ocorrem todos os dias.” afirma Patty.

 
 
 
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